Salve Tancredo

Outro dia, parado no meio da rua, ouvi um sonoro “Lá vem Tancredo Neves”. Carregado de emoção, comecei a gritar, no âmago, como se minha garganta estivesse próxima a explodir. “Liberdade!”, “Liberdade”. Assim, empunhando a bandeira de um país esquecido numa noite que durou 24 anos, ecoava na minha mente toda a luta por uma democracia inteiramente nossa, completamente minha – parece até egoísmo, mas gosto da ideia de ter uma democracia para chamar de minha.

Já não conseguia ver quantas pessoas ali estavam. Todas muito preocupadas com o futuro. Queriam aproveitar cada momento daqueles instantes. Eram históricos. O velho Tancredo Neves caminhava para ser eleito presidente da República. Pela primeira vez, em muitos anos, o Brasil vivia um clima de eleição para a presidência tupiniquim. É certo que não era o ideal da minha democracia, onde todos votavam e todos poderiam ser votados. O velho Tancredo, mineiro baixinho, foi escolhido em meio a uma eleição indireta. Mas ainda assim era um civil chegando ao poder, depois de tantos anos com os amáveis milicos no poder. Era a conquista que precisava para voltar a acreditar no meu país.

Olhei para o rosto de uma jovem, ao meu lado, seu rosto trazia uma esperança que há tempos não conseguia ver. Ela era linda. Seu olhar brilhava, refletindo a luz do sol. Assim como eu, ela nutria uma expectativa desenfreada de que amanhã há de ser outro dia, como diria o grande Chico (Buarque, para quem não conhece). Apesar de estar sorrindo, seu semblante carregava uma emoção que não conseguia identificar. Ao mesmo tempo em que parecia feliz, a jovem estava preocupada. Parecia prever que tudo aquilo poderia ser apenas um sonho juvenil, a utopia claudicante que alimenta os corações dos tolos. E não era a única.

Outro jovem, talvez um pouco mais velho, chorava copiosamente. Não consegui parar de fitá-lo. Sem qualquer sensação de vergonha, as lágrimas escorriam sobre suas bochechas. Não eram rosadas. Ele era um negro, forte e de porte atlético. Provavelmente chegou a tentar ser jogador de futebol, mas preferiu estudar como pedia a mãe. Foi nos olhos dele que enxerguei que a esperança da garota seria frustrada muito em breve. Mas ainda assim mantive a credulidade que tudo ficaria bem. Não é possível que, diante de tantas adversidades, poderíamos perder aquela oportunidade única de ver o futuro concretizado e deixá-lo passar, sem qualquer aceno.

Naquele instante, comecei a recobrar a consciência e escutei a conversa daqueles dois, que se conheciam afinal e não perceberam que ali estava.

– Levaram tudo. Tudo. Não sobrou nada, disse o garoto.

A jovem, que até então tinha os olhos brilhosos no meu ponto de vista, mostrou que aquele brilho não vinha de felicidade. Vinha do reflexo dos olhos marejados do amigo – ou irmão, não sei ao certo. Ela reproduzia não a esperança de um Brasil melhor. Mostrava a sua decepção com o que o país veio a se tornar. O choroso rapaz insistiu:

– Trabalhei o mês todo, junto com a faculdade, juntei o meu dinheiro para comprar os livros. E alguém levou. Tudo. Tudinho.

Daí então uma revoada de homens e mulheres passou por nós. Gritavam, como ouvi desde o princípio “Lá vem Tancredo Neves”. E corriam desesperadamente para encontrar um ônibus. Era o Tancredo Neves. Que, tempos depois, virou Beirú, bairro em que aqueles dois jovens, o assaltado e a amiga, moravam. E eu voltei para minha vidinha repleta de esperança. Porém, depois do Tancredo Neves, não vieram Sarney, Collor, Franco, Cardoso ou Inácio. Vieram apenas rostos cansados daqueles que já não tinham mais a expectativa que o futuro seria melhor.

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