A moça dos camelos

O que mais tem aguçado a curiosidade durante o American Language and Culture Program não é o inglês ou a cultura americana – que inclusive não consta no programa das aulas. Com alunos de diversas nacionalidades, principalmente da porção oriental da Ásia e do Oriente Médio, as culturas além dos limites norte-americanos são, no mínimo, intrigantes. É curioso como eles conseguem conviver harmoniosamente com as tradições ocidentais e como eles reagem naturalmente aos “estranhamentos” dos demais estudantes. O destaque fica para a cultura islâmica com tradições bem distintas das demais e, principalmente, dos trópicos sul-americanos.

Numa tarde qualquer, Mohammed* resolveu mostrar a foto da esposa a uma colega. A curiosidade falou mais alto e tentei me aproximar, sendo porém advertido com grande polidez pelo próprio. “Você não pode ver a minha esposa”, afirmou peremptoriamente. No primeiro momento acredito que quase todo mundo no Brasil acharia que era uma brincadeira com relação à ciúmes, mas Mohammed completou: “Perdoe-me, mas, por tradição religiosa, apenas os parentes da minha esposa podem ver sua face”. Já convivia com uma saudita que cobria apenas o cabelo e a pergunta por que há diferença suscitou à mente. O próprio Mohammed não deixou espaço. “Minha família é mais tradicional e minha esposa só não cobre os olhos quando vai à rua. O restante do corpo tem que ser coberto. De onde eu venho, isso é uma tradição muito respeitada”, informou. Ele mostrou a foto da esposa para a sul-coreana e disse à mesma que apenas mulheres podiam ver o rosto dela. Dias depois, uma mulher islamita andava calmamente pelo campus com o corpo todo coberto. E não era a esposa de Mohammed.

Outro Mohammed* contou detalhes de como conheceu a esposa. “Já a conhecia antes, porém, ao terminar a faculdade, falei com meus pais: ‘quero casar com tal’. Meus pais foram até a família dela e acertaram o casamento”, disse. “Você viu o rosto dela antes do casamento?”. “Apenas uma vez. É permitido ao futuro marido ver a face da mulher uma vez antes do casamento”, afirmou. “E você pode desistir depois de ter visto a face dela?”. “Não. Quando a vi sem o véu é como se fosse a confirmação do compromisso. Não poderia mais voltar atrás da minha decisão”, concluiu. O casamento inclui, além do interesse do noivo – a noiva não tem tantas opções -, interesses econômicos e sociais, como manter a tradição islâmica forte entre famílias tradicionalistas.

A mulher que não cobre a face, entretanto, faz parte de um grupo não tanto incomum que tem a oportunidade de cursar o ensino superior e vir para o Ocidente frequentar universidades. “Não posso ser fotografada, me desculpe. E também não comente o meu nome caso escreva sobre alguma coisa do islã”, pediu ela. Como ela casou? Foi escolhida pelo esposo, assim como Mohammed o fez. “Por que você cobre o cabelo?”. “A tradição religiosa da minha família permite que eu não cubra a face, como outras mulheres da minha religião. É uma outra maneira de respeitar o que aprendemos com o Islã”, comentou.

As emoções, entretanto, são as mesmas em ocasiões especiais. “Você assistiu ao parto?”. “Foi uma emoção incomparável. Não há como descrever, só sentindo para saber”, relatou o novo pai do mundo árabe, Ali*. “Você chorou?”. “Prendi a respiração para continuar encorajando minha esposa”, brincou bem-humorado. O mesmo Ali chorava, na segunda-feira anterior, a morte de dois amigos durante os protestos na Líbia. “Passei a noite em claro quando soube da notícia. Quando isso irá acabar?”, questionou. Outro estudante da Líbia comentou ser contra o movimento de repressão de Muammar Khadafi, mas também é contra a ação ocidental dentro do País. “Podemos resolver nossos problemas sem a ajuda externa. Muita gente inocente está morrendo nessa guerra”, lamentou.

Entre as grandes curiosidades do mundo muçulmano, entretanto, foi saber o que vale mais além de petróleo nas áridas terras do Oriente Médio: camelos. Uma das sul-coreanas da classe, bastante espantada correu para contar assim que descobriu. “Você sabia que ela [a muçulmana que cobre apenas o rosto] é riquíssima na Arábia Saudita?”. “Não, o que ela faz?”. “Cria camelos. A família dela possui algumas centenas deles. E se, no mundo árabe, quem tem camelo já é rico, imagine quem cria?”, comentou.

* Os nomes foram suprimidos ou substituídos em respeito aos personagens. Mohammed e Ali são nomes bastantes usuais no mundo árabe.

Comments
7 Responses to “A moça dos camelos”
  1. Goi disse:

    Ler o texto de Fê, é uma experiência! seja boa ou ruim, rs. Acho legal a importância que ele dá sopa multirracial que tem na Faculdade dele. Confesso que estereótipos pré-formados (fico indignado que arrancaram o Hífen da gramática) que ficam em minha cabeça, são defenestrados da mesma ao lê os relatos. Esse cabra vai longe, suas convicções e metas estão a décadas cosmológicas de minha vã filosofia. rs. Abraços Mano! PS. desculpe não lhe ajudar com o Juramento….ando meio pé de macaco com a memória!, rs. E piora quando chega na Loja Filosófica, coisa de gente doida..liga não…hihihihi

  2. Luciano disse:

    Excelente texto. Muito interessante.

  3. Danniel Tosta disse:

    Curso de Cultura ” Americana” hein? acho que você levou o pacote completo! hehehe
    Parabéns, excelente texto, como sempre!

  4. Silvio José Paixão disse:

    Muito bom texto, Fernando!! Enriquecedor, fácil entendimento e muito curioso, Parabéns!!!!

  5. Daricélio disse:

    Você tá um “monstro” Fernandinho!
    Parabéns! A leitura dos seus textos atrai, empolga e faz querer mais.

    Sucesso!!!!!!!

  6. Prates disse:

    Excelente texto! Grande desenvoltura redacional! Que olha sempre se pergunta: “Como pode um grande texto sair de uma pessoa desse tamanho?”

  7. Enio Rios disse:

    Mt bom ler os seus textos, mas é melhor poder discutir com você pessoalmente (kkkk).
    Estamos aguardando o seu retorno.
    Um abraço

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